terça-feira, fevereiro 05, 2008



"Julho 02, 2005. Os aeroportos.

Eu gosto profundamente de aeroportos. Gosto muito de observar gente
nos aeroportos - e de ficar sentado a espera de aviões. Gosto de horários
de aeroporto. Daquele ruído de fundo, do voltear, de gente que parte e
chega, de gente que pernoita nos aeroportos aguardando o primeiro voo
da manhã. Gosto de gente que lê livros, sentada em cadeiras desconfortáveis
ou apenas cadeiras de aeroporto - livros irreais, histórias fáceis, romancistas
de segunda e terceira categoria. Gosto de gente que perde voos e que fica
sentada esperando o próximo. Gosto da Music for Airports, de Brian Eno.
Gosto de iPod nos aeroportos. Gos­to de tabacarias onde se vendem jornais
em línguas desconhecidas e de cidades sem geografia. Gosto de áreas de
fumadores em aeroportos longínquos, de restaurantes banais, desproporcionados,
sem decoração. Gosto daquela simpatia rara do check-in em companhias aéreas
do Oriente. Gosto do som de cidades murmuradas nos altifalantes, como
Denpasar, Darwin, Colombo, Guatemala, Anchorage, São Paulo, Helsínquia,
Montevideu, Porto Alegre.

Os aeropor­tos atraem-me profundamente: gosto de escalas de três horas em
aeroportos distantes do destine final. Gosto de livrarias e de cervejarias de
aeroporto.Gosto da área de fumadores do aeroporto de Singapura, um jardim
com piscina, rodeado de restaurantes, plantas exóticas, ventania que vem das
pistas, o ar tépido e húmido, arrastado - e dos que esperam ali antes de
embarcar para outro lugar desconhecido. Gosto das sanduíches de salmão com
creme de queijo no Harrods do aeroporto de Lisboa. Gosto das livrarias LaSelva
dos aeroportos brasileiros. Gosto da desordem selvagem de Madrid, em plena
madrugada, quando chegam os voos da América Latina. Também gosto da
madrugada do aeroporto de Amsterdão, ao chegarem os voos do Oriente.
Gosto dos restau­rantes, do de Frankfurt e das lojas de compotas e conservas
de Heathrow. Gosto da simplicidade comovente e fria do de Keflavík, na Islândia.
Gosto da sensação absoluta do fim do mundo anunciado em Gandem, na Terra
Nova canadiana - e dos pântanos que se vêem do ar, em pleno crepúsculo.

Já passei noites em aeroportos vazios, como na Cidade da Guatemala. Já adormeci
em aeroportos cheios de gente, embalado pela passagem de gente perdida ou
apenas procurando um voo, um destino, uma cidade de painel electrónico, um
mapa turístico de tabacaria, um jornal de há três dias.

E há essas coisas que se levam de aeroportos: revistas, roupa amarrotada, o
cheiro de uma viagem por fazer, uma sanduíche que é igual em todo o lado,
as promessas de amor contrariado, as juras de amor eterno, os últimos beijos,
o primeiro beijo, o derradeiro abraço, lagrimas, um riso aberto, retratos de
cidades invisíveis e que nunca existiram.

E a claridade tranquila do aeroporto do Funchal. O ruído de altitude quando
se chega à Cidade do México. O jazz inaudível quando se atravessa a porta
das chegadas em Nova Iorque, sobretudo em JFK. As melodias. A musica
que é igual em todo o lado, os hits que se vendem nas lojas de discos, os
centros de Internet onde todos navegam no Yahoo ou no Hotmail, as filas
intermináveis do aeroporto de Jacarta. As escalas em Miami. O chão de pedra
do de Estocolmo. A musica dos Madredeus na chegada ao Ben Gurion, de
Telavive. Os pavilhões de madeira e tule em Belize City, depois de uma
tempestade nos recifes. O aeroporto de Ushuaia, na Terra do Fogo, diante
da Antárctida, com flocos de neve caindo sobre o canal Beagle - o que nos
transporta para a imagem de Darwin à proa do seu navio. O de Oaxaca, no
México, e a Canción Mixteca ouvida numa loja de mezcal, tocada por uma
orquestra de marimbas. Os atrasos nos aeroportos de Cabo Verde. O ar
sufocante na chegada a Moçambique, irrespirável. A tepidez desconfortável e
os ruídos de baratas e de grilos em Bissau, na Guiné. O cheiro de fritos e o
fumo dos autocarros diante do aeroporto de Abid­jan, na Costa do Marfim.
Um voo que parte numa madrugada de Outono aus­tral, em Buenos Aires.
O casal que fica sentado entre passageiros felizes enquanto se aproxima a
hora de o avião de um deles partir para sempre. O rosto e o corpo de uma
mulher vistos através do vidro de uma zona de partidas, aquele ponto de
não-retomo, Os discman, o walkman. O Herald Tribune de fim-de-semana.
As escovas de dentes descartáveis. As coisas que amamos de um aeroporto,
um rosto visto através do vi­dro, as despedidas breves."

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Julho 2005

Amo esse texto, deixei lá no Twitter mas resolvi trazer pra cá.
Lá é tudo muito rápido. Parece que aqui fica pra sempre.

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