segunda-feira, maio 04, 2020


Diário de ontem. Roubo flores na rua. É uma tradição. Diz que São Paulo é uma cidade de concreto, aham, na minha rua contei 56 espécies de flores diferentes nos canteiros. 56. É a disneylandia das ladras de flores de jardins. ás vezes volto para casa praticamente com uma corbeille. Dia desses fui ao mercado que fica mais longe e entrei pela Zequinha de Abreu que só tem casarões e os jardins se projetam nas calçadas. Ou seja. A quarentena segue, o insuportável lá fora, também. Fico atenta a amigos que estão entrando em angústia, tento, de novo, explicar sem ser com textão, com outras palavras, que a minha questão não é se alienar, negar a realidade para não sofrer, ao contrário, e é saber qual é o momento que você quer perpetuar, quem você quer ser? O que vai sobreviver ou o que vai sucumbir? Quero que você, tendo passado por esse horror ao qual todos estamos expostos, tanta desumanização, crueldade, violência, seja quem vai sobreviver e vai ser quem vai contar a História, não com sentimento de alívio, que é para não esquecer, mas com clareza. Daí que qualquer coisa para não perder a saúde emocional está valendo, a começar por parar de se julgar e pensar o tempo todo em tudo, no que é ou no que deixa de ser. Quer falar com o amiguinho imaginário que agora te acompanha na quarentena, fale minha querida, quer falar sozinho brigar e chorar com ninguém, altos diálogos com o nada, dou força, ao contrário de achar pirante, sua sanidade está garantida, como o amigo que está tentando comunicação telepática com os gatos. E abelhas. outro dia aqui por perto tinha alguém recitando Shakespeare, aos berros, cante ao vivo desafinando horrivelmente, (foi mesmo horrível). Planejar viagens que nunca serão feitas, desejar amores que serão sempre impossíveis, utopias alimentam, assim como os banhos longos depois de ter feito a máscara facial de manteiga de cacau, mas que de tão gostosa acabou passando no corpo inteiro mesmo. Pesquisar casamentos felizes, compêndios de fantasia, manual de como se tornar invisível, está valendo. Eu danço. De repente comecei a dançar um dia aqui, danço quando acordo, danço o dia, danço quando vou dormir, instintivamente, intuitivamente, memória do corpo, dos anos de ballet. Dia desses na apresentação do filme da Claire Denis o Dodô falou da filosofia da corporeidade de raiz africana, que diz que o nosso corpo é o maior material de aprendizagem do mundo. Se você quer conhecer o mundo nas coisas mais profundas da vida como, quem nós somos, o que é a vida, por que estamos aqui, a resposta é: dance. É colocar o seu corpo no mundo, dançar em irmandade com a dança do mundo. Tudo dança, o vento está dançando, os átomos estão dançando, em mim, em você, no universo, dance o seu corpo para encontrar seu sentido e resposta. Dançar com o mundo e com um outro, para seu corpo existir nele. Quanto de bonito é isso? Então eu danço, e eu canto e escuto as músicas que me levam. E depois que eu danço e canto e escuto, sinto que a vida é um grande gesto poético e que ir ao mercado só para comprar água e chocolates, ou alguma coisa assim tão absolutamente banal é que me sustenta emocionalmente, alimenta minha serenidade, tão necessária, porque a gente agora é uma ilha, cercada de dor por todos os lados. Valeu, Aldir <3