sexta-feira, maio 02, 2003




Gostoso de ler:

"Rodada summer draft

Amei primeiro Eduardo. Mas ele morreu de acidente. Viajou sem mim pra Guarapari e caiu com o
Fusca numa ribanceira. Esmagou-se inteiro nas ferragens dum São Geraldo modelo velho. Sem a
menor categoria. Senti saudades dele por umas semanas, depois Eduardo se tornou um retrato 3
por 4 dentro duma carteira que dei pra um bazar de usados.

Amei menos Daniel. E ele morreu de tiro. Foi ser polícia em Sete Lagoas e correu atrás duns
marginais. Rodopiou com o carro pela estrada, saiu correndo pela colina, foi atingido pelas costas.
Duas perfurações certeiras no coração. De brinde, mais uma na cabeça. Fui ao enterro mas não
fiz cara de viúva. Me chamaram de fria. Beijei o cadáver na boca. Me chamaram de sinistra. Quis
que o cremassem pra eu ficar com a urna. Me chamaram de soturna. Enterraram Daniel junto com
as tias que morreram de parto. E Daniel virou umas alianças de prata no meu porta-jóias de craquelê.

Amei outro Eduardo. Este morreu de choque. Tocava guitarra, som alto. Choveu pela janela e ele
não viu. Estorricou-se desde os dedos. Caiu morto de repente. Dizem que chegou a gritar o nome
do Hendrix. Fui ver o corpo carbonizado. Apelei pros orixás. Me chamaram de louca. Pé frio. Dei
de ombros. Eduardo tinha sido o primeiro.

Alexandre morreu de cárie. Teve um abcesso. Uma septicemia invadiu-lhe as entranhas. Dizem
que havia escapado de dois tiros no pescoço, mas daquele abcesso não escaparia. Acompanhei
tudo de perto, ia ao hospital todos os dias. Levei flores duas vezes, quando achei que não mais o
veria. E estava errada. Me chamaram de azarada. Dei de ombros. Alexandre deixou a cárie tomar
conta. Morreu com os dois incisivos podres e um chifre, como um unicórnio, mas muito doce.

Bruno foi festejado. Morreu de aneurisma. Estourou a veia bem na hora em que ele ia me dar na
cara. Plantei nele as palmas dos meus olhos, arregalados, apavorados. Nunca havia apanhado de
homem antes, a não ser do meu pai. E antes de a porrada pegar, Bruno caiu duro, teso, lesado.
O chão não se abriu. O aneurisma foi detectado no IML. Fui ao enterro desconfiada. Me chamaram
de culpada. Dei de ombros. Chutei os joelhos da irmã caçula dele. E Bruno foi festejado. Tomei
uma vodca pra comemorar o tabefe que não levei.

Daniel me assombrou numa noite. Apareceu diante da minha cama, dizendo que eu ainda lhe devia
qualquer coisa. Ofereci meus cornos, minhas palmas, meu traseiro. Não era nada disso. Depois
disse a ele que gostaria de repetir a dose. Ele veio incisivo, meteu as duas mãos na minha cintura
e disse que não voltaria mais se eu me oferecesse daquela maneira. Me chamou de vulgar.
Dei de costas. Fiquei chateada. Achei Daniel machista. Onde será que ele aprendeu isso?

E mais um Eduardo morreu de acidente. Caí na cama dele sem perceber. Ele deixou o aparelho
de dvd cair dentro do ofurô em que tomava banho de sais. Fiquei vendo a água vermelha escorrer
pelo chão do banheiro. Peguei o avião de volta pra São Paulo. Deixei o cadáver lá. Disseram que
havia uma mulher com ele. Nunca chegaram a mim. Fiquei quieta, pensando que me encontrariam
se investigassem minhas impressões digitais na cabeceira da cama, na porta do banheiro, nas
costas de Eduardo. Mas nunca me encontraram. E eu nem cheguei a ir ao enterro.

Gustavo me apareceu veloz. Deu a cantada, caí. Mas disse que estava de passagem. Estapeei
o cara e dei o fora. Não era minha intenção que alguém me amasse. Queria apenas que ele
morresse em paz. Morreu num quinto dia útil do mês, mesmo dia em que costumo receber meu
salário. Não tive tempo de ir ao velório porque fiquei presa na fila do banco. Me chamaram de
vingativa. Dei de ombros. Nada a ver. O caso dele era suicídio. Pulou do prédio da Faculdade de
Direito. Ficou interessante o desenho do cadáver, a giz, no chão da avenida. Guardei uma foto
de lembrança.

Fábio apareceu no estacionamento do McDonalds, num carro preto, seminovo. Disse que me
queria naquela hora. E voltou pro Rio de Janeiro sem nada na bagagem. Recusei todas as suas
investidas, não cedi a nenhuma cantada, nem quando ele ficou nu no meio do pátio do presídio.
Deixei uns pães de queijo, uma lata de coca-cola com um 38 dentro. Acho que foi com essa
arma que deram nele as coronhadas.

Próximo, por favor."

Ana Elisa Ribeiro. Mais aqui : )


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