sábado, março 15, 2003





Momento tem gente falando o que eu tou pensando:


"Manifesto Pé no Chão: Ao terceiro setor no Brasil e coisas semelhantes.

Ralf Rickli*

De repente me vem a imagem de meu pai, saído da roça e formado médico depois dos 30, comentando
pensativamente aos 50 a sentença que lera em Tolstói: "ser pobre em um país de ricos é uma vergonha -
porém ser rico em um país de pobres é um crime..."Não duvidei: era o óbvio. Mas nunca achei que as
receitas tradicionais, nem da direita nem da esquerda, dessem conta da realidade. Professores politicamente
avançados também podem ser mortalmente chatos, destruindo nos alunos todo prazer de conhecer - e sabemos
quantos desastres tanto o Oeste quanto o Leste impingiram ao meio ambiente. Por isso sempre fui atrás do
alternativo: no conhecimento, na agricultura, na educação, na administração...

Nessa busca fui parar na Inglaterra, onde deparei com Judy Hurley (depois Bloomgardener), egressa de quantos
movimentos alternativos norte-americanos se possa imaginar: anti-nuclear, feminista, de agricultura orgânica...
Assim que voltei, minha mestra quis conhecer o Brasil. Preparei cuidadosamente uma agenda visitando tudo o
que me pareceu alternativo no novo país (pós-abertura Geisel) que eu encontrara. Judy passou zunindo por tudo
aquilo e poucos dias depois estava profundamente envolvida com as Comunidades de Base da época (1982) -
que me pareciam então de um esquerdismo tão convencional e pouco... "alternativo"...Diante da minha surpresa,
Judy deixou claro entender que uma alternativa que não se referisse à absoluta maioria da população do país
não era alternativa nenhuma, era pura imitação de modelos externos. Seu trabalho, na realidade norte-americana,
havia sempre sido política de base. A política de base aqui seria outra, de acordo com as urgências locais.
(Depois disso Judy coordenou por alguns anos o movimento Abraço, nos EUA, pelo cancelamento da dívida do
3.º Mundo, antes de se assentar como terapeuta de refugiados...)

Revejo o caminho mais uma vez: 1968, eu, com 11 anos, olhando fascinado de longe as cores do movimento
hippie... Depois, com 20 e pouco, me engajando quando esse já tinha virado "movimento alternativo"... Pra me
contarem, aí pelos 40, que eu era parte do "terceiro setor": iniciativa da sociedade civil com objetivos sociais.
Hoje não dou conta de ler os inúmeros boletins e anúncios de seminários que me prometem ensinar como cuidar
do Terceiro Setor com as ferramentas da Administração de Empresas - ou então como cuidar da Administração
de Empresas com ferramentas, digamos, alternativas (p.ex. meditação). Tudo incrível, maravilhoso. E inacessível
a quem vem há anos tentando desenvolver, no nível do chão,"sem parentes importantes e vindo do interior",
alternativas reais para jovens que encontram limitações econômicas na sua busca de desenvolvimento humano
integral...

Colegas: pelo menos 85% dos brasileiros, 145 milhões, "encontram limitações econômicas na sua busca de
desenvolvimento humano integral". Sim, não menos - se isso inclui, p.ex., um bom psicoterapeuta, um ensino
inspirador, um pão integral sem resíduos tóxicos... um bom seminário sobre cooperação. E as alternativas
maravilhosas que cintilam na Internet, atingem a quantos deles mesmo? Ou, mesmo que pretendam, quanto
do investido chega ao nível do chão, quanto fica pelo caminho remunerando a tão decantada profissionalização
do terceiro setor? A qualidade dos serviços sociais profissionalizados agora encanta nossa sociedade esclarecida -
na forma de balanços e relatórios bem escritos! Quem vai lá conviver com os atendidos alguns dias e sentir a
qualidade do conteúdo do trabalho? Os meios adoram tomar o lugar dos fins, e o acessório custa várias vezes
o essencial. Pois já o "investimento" requerido pelos cursos que prometem ensinar uma pessoa a gerir adequadamente
a relação custo-benefício nas iniciativas sociais, esse investimento é com freqüência um múltiplo qualquer do valor
com que a iniciativa, de um jeito ou de outro, fazia mensalmente o milagre de atender umas dezenas de crianças,
ou algo assim. Quanto altruísmo da parte de profissionais que deverão abrir mão da maior parte do retorno desse
investimento! Ou... ?

Pois é, uma suspeita chata insiste em zunir em volta da minha cabeça: essa tal profissionalização do terceiro
setor não seria apenas um mercado de trabalho alternativo vislumbrado pelos profissionais da área econômico-
administrativa, pressionados demais no seu próprio setor - porém menos preocupados com os efeitos sociais
últimos de sua atuação que com o preço da banana no interior da Nova Guiné? Mas não, não, imagine se uma
coisa dessas seria possível, longe de mim tal interpretação maldosa! De um modo ou de outro, fica cada vez mais
difícil, a simples cidadãos que quiseram tomar uma iniciativa social, conseguir realizar alguma coisa, ou mesmo
sobreviver, nesse mundo tão profissional! Não dá mais pra ser cooperativo a não ser competitivamente!

Mas como sempre houve gente estranha nesse mundo... ainda estamos aqui... sapo cururu... na beira do rio...
à espera de colaboração... da cessão de uso de bens, como sempre cedemos... da doação de serviços, como
sempre doamos... ou de sua execução por remuneração simbólica, como a que qualquer professor de escola
pública recebe mês após mês... fazendo de um modo ou de outro nossos pequenos milagres... neste país
exótico aqui embaixo, onde ainda se anda com pés no chão.
(Obs.: será que alguém mais anda pensando nessas coisas? Fiquei curioso!)

*Ralf Rickli, 46 anos, educador extra-escolar desde 1976, desde 93 desenvolve na
prática a Educação Convivial, em torno do que se constituiu a Associação Trópis,
de cujas atividades é hoje Coordenador Geral e Pedagógico. E-mail rr@tropis.org .
Este texto é divulgado por iniciativa pessoal, e não da Associação Trópis. "


Peguei o texto na FundBr, lista de discussão de Captadores de Recursos, na qual me inscrevi
numa época em que trabalhei nessa área. Vivi exatamente essa situação, é claro que numa dimensão
muito menor, mesmo porque, minha experiência nessa área não durou dois anos, mas minhas iniciativas
foram, em grande parte, dificultadas por essa falta de "profissionalismo" de minha parte. O que me pareceu
uma contradição. O que traduzi como "Terceiro Setor", era a sociedade atuando numa situação onde o governo,
o Estado, não tinham iniciativas ou elas estavam presentes mas não o suficiente. Então ia lá o cidadão, buscar as
soluções e recursos para resolver aquela situação ou ia lá o cidadão apresentar a sua idéia para pessoas que
estivessem preocupadas com a mesma questão. Claro que nesse caminho, aprender determinadas linguagens
ou ter o conhecimento de quem com dinheiro ou influência, pudesse ajudar nessa realização, tanto melhor,
economizava tempo. Saber escrever um projeto também era bom negócio. Mas o que encontrei foi uma espécie
de profissionalização que fechava portas, já infiltrada na possibilidade de ter acesso aos patrocinadores e que
me deixou bastante confusa. Terceiro Setor, pra mim, sempre ficou mais fácil de ser definido pelo que ele não é.
Terceiro setor não é status quo, não é governo, não é empresa. O que poderia ser um ponto contra .- é bom a
gente ser definido pelo que é, e não pelo que não é: )) - pra mim é onde reside, ou residia, a maior força desse
meio e que o "profissionalismo", a burocracia, ter que começar a tomar atenção aos mesmos jogos de poder de
sempre, o descaracteriza. Enfim, unir, unir a sociedade em torno de um projeto que a melhore, sim. União.
Unir, sim, profissionalizar? Contraditório. Pra mim é esquisitão. Não vou deixar de fazer minhas coisas, quando
rolar uma idéia ou quando me solicitarem ajuda e sei de algumas pessoas que conseguem furar esse bloqueio.
Mas essa coisa "profissional" de terceiro setor já está instituída e é ruim, porque quem está super a fim de resolver
uma situação social urgente ou abrir novas frentes, não tem tempo, nem dinheiro, nem cabeça pra ficar fazendo
trocentos cursos para que sua proposta e seu projeto ou a sua pessoa sejam aceitos como legítimos.

.Acho que rola um quarto setor por aí. Eu ia gostar:)).



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