sábado, agosto 31, 2002




Uma coisa triste do meu Jogo do Currículo:

"Conheci seis pessoas que cometeram suicídio
Uma delas era poeta e dias antes comprou meu carro".

Eu me lembro da figura dela, entrando no meu apartamento, com olhar de dúvida.
Loura, não frágil mas, fragilizada, até mais, pelo contraste com a amiga que a
acompanhava; morena, alta, de caráter forte, dessas pessoas que olham nos
olhos até pra aceitar cafezinho, (depois eu entendi o porque de toda aquela
necessidade de contato, ela precisava estar muito atenta).
Eu me lembro da atitude dela em relação à amiga que veio comprar
meu carro: protetora, cuidadosa, sempre justificando alguma coisa.
Me lembro de ter olhado pra ela, aquela mulher magrinha, clara e,
em algum momento, ter estabelecido os sinais.
Afinal, eu já tinha passado por situações de suicídio.
Eu percebi nela, aquela aura de limite, que eu já tinha visto antes.
Aquela mulher que enquanto me perguntava sobre a documentação do carro,
me perguntava se eu era feliz? Me perguntava, porque a minha vida era feliz?
Não com essas palavras, mas com essa intenção, meio perplexa com a minha felicidade.
Eu queria ter dito a ela alguma coisa, naquelas vezes que a gente se encontrou.
Queria ter dito, não faça, não pense. Eu me lembro de ter ficado nervosa na
presença dela e a amiga notou meu comportamento. Ela jamais saberia o porque.
Mas como dizer a alguém que veio comprar seu carro que você está vendo a dor
dela e que você sente no fundo de sua alma, todo aquele vazio insuportável,
porque você entra na alma das pessoas sem querer?
E eu queria estar enganada, e eu me convenci que eu estava enganada.
Ela estava tão feliz: - "É meu primeiro carro", e ela tinha morado em Londres,
e tinha amigos, e trabalhava na Globo, então, a maluca era eu, graças à deusa,
que ficava vendo suicídio, na mulher que veio comprar meu carro.
Projeções de minha própria história de vida, das mortes pela qual passei, impotente.
Mas não. A dor dela era real e foi mais forte.
Será que eu devia ter dito: olha, você veio comprar meu carro,
mas você quer tirar sua vida, porque?
Assim na lata, porque, pra dizer uma coisa dessas, não pode ser diferente
não tem como ser diferente.
Donde veio tanta dor, você sabe? Não é melhor descobrir a morrer?
Será que ele ia dizer: eu só vim comprar seu carro, você é louca, é?
Será que a amiga dela ia me atacar, me empurrar contra a parede,
assustada: não fale!?
Será que eu podia ter feito alguma coisa?
Não falar pra não parecer maluca. Eu fiz isso tantas vezes.
Eu carrego isso comigo até hoje. Eu devia ter falado. Hoje eu falo.
Eu queria ter falado. Talvez nem adiantasse, era o mais provável.
Talvez eu passasse por maluca, era o mais provável. Mas, eu devia ter falado.
O carro era um fusquinha cinza, recém-saído de um consórcio.
A poeta era Ana Cristina Cesar.
A história todos conhecem.



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